25.3.06

Agora

Os poemas caem sobre os cantos da sala grande.
Vão caindo como folhas sobre o castanho do chão,
inerte, parado recebe o perdão
que trazem na sua curva pingada, a espaços lenta.
É essa a palavra que preciso de dizer-te agora,
não me sai, nunca me saiu. Presa nas portas do medo,
incauta nas escadas do temor, do dano. Mas
quando o sol estiver quadrado e o mar esvaziado
em que nenhuma folha mais houver para cair,
sairão como pombas livres, encarnado sentir,
as palavras que agora não digo. Volto
os olhos para trás, olho o chão e não falo. E
riscando falas no papel do engano, sorrio-te.
Cerro as portas da sala e espero que a palavra possa, sem ar,
um dia

morrer.

Molero

Cai, grito azul

Cai uma folha a mais sobre o manto. Passo
os olhos na noite negra de outro sonho.
Nas manhãs brancas de sol medonho
sei que sentes o som do compasso

que ontem te escondeu aquele pedaço
de sonho, de vida e de sol tristonho.
Agora já não me sorris, suponho,
andas por terras de sentidos feitos de aço.

Deixo-te sozinha com a terra branca, com ninguém.
Apenas um pedra, a que tem
o meu grito azul, a voz do deserto

onde te imagino. E no chão que pisava
com firmes passos. Aqui onde cruzava
o teu amor, o que é tão certo.

Molero

21.3.06

Rosto de Pessoa

Acordo com a testa cheia de bocados do Pessoa
no desafio constante, incessante,
de que um só corpo não tenha
uma só alma, nem um sentir só.
E no arrepio de tentar sua face tocar, esbarro
no rugosidade do tempo e entro nele,
inanimo-me por aquilo que calado me anima por dentro.
Mas sem que dentro de mim respire um suspiro de vida, sinto
que os lírios, que as plantas vão correndo, estendendo,
os braços, as folhas-mãos
que na ponta escondem o lamento,
que os meus passos escrevem no vento.

Ou quando consigo estender o chão sobre o cansaço, o desgosto
e escolho os meus traços, em que desenho o rosto.

Molero

14.3.06

Forma pequena

Sento-me, na fuga e na tortura, na amargura,
encondo a terra escondida
pela voz perdida e os erros adormecidos, embebidos
em olhos de outono, como pedras castanhas
e na seiva que me alimenta as entranhas
queimo o resquício, astilha, pequena
porção da ilha em que mastigo a solitária
solidão que nos faz esperar,
aguardar o continente de países.
Raízes. Verto a água da cara num rio terno,
eterno, derramo o que sinto e o que minto
e assim consinto o que sentes. Que mentes
e o sumo e o talento, lentos e presentes .
Como num poema esvoaças até mim em forma de

pássaro.

Molero

9.3.06

Sol de frente

Um dia um homem encarou o sol de frente,
e com coragem demente, e voz negra perguntou-lhe de repente:
Porque todos os dias me surges à frente?
Se nem sequer te peço,
nem mesmo te conheço,
ou te convoco, para me ajudares a caminhar.
A acordar.
O sol respondeu-me: porque a vida sem mim não existe.
Não resiste.
E assim, simplesmente,
concluí subitamente,
porque afinal não consigo viver sem ti.
Apaguei a luz, e dormi.

Molero

3.3.06

Um dia só

Naquela manhã fez-se a primeira página de um dia só
nosso, em que rasgámos o sonho de uma tarde de linho
e lã, e de terra. Vermelha como os olhos nossos, talvez um café
inanimado, parado, como as pernas nossas, e de pé
erguemos os olhos ao chão, como cães
submissos ao amor que unia nossas bocas.
Sentámos o grito que pensámos, parámos as vozes ocas
do relógio da discórdia. Nasceu a paixão de respirar
sons comuns, vistas gémeas, corações copiados
amados. Vim a este lugar passados três meses,
para olhá-la novamente

nascer.

Molero