24.5.06

Berço de barro

Poderei eu dizer-te
que enfim encontrei os pulsos do segredo,
esquecidos,
como minas em berço de guerra,
como barro de sonhos lentamente arrolhados
por amoladas mãos assassinas,
as mesmas que me separam a mente do corpo,
quando absorto tomo o medo como sangue caseiro.
Por vezes é nas trevas excessivas,
onde o sonho não chove,
é na linha da estrada que navega,
por nódoas forma de núvens,
que nunca choram,
é na tua voz de Malinois,
num encontro ecoado de alturas,
que tinhas visto os meus olhos ateados,
e se os teus,
agora abertos como praças largas,
me mencionarem em tarde de cobre,
quando potes chovem,
deles só vou esquecer, prolixos,
o desvio que os fechar.

Molero

16.5.06

Cigarro

Escorregava, dançava-me, nas mãos e nos nós que os dedos fazem a meio, vão-se dobrando, deslizava-nos a voz pelo pensativo cigarro da forma da faca. Entrava para dentro, nas queimaduras, nos círculos de sangue morto e absorto e derrotado, o corpo e o sangue, partidos à facada. Aqui no negro tom de festa, onde a terra já é sangue, os olhos são já vidro, as pernas são ainda vácuo. Nem flores, nem frutos. Nem sangue que grita, nem gritos que sangram.
Consigo esventrar o sangue escuro que me subiu pela pele, pela dor, e tu que sempre deslizaste a voz pelo cigarro irrequieto, bicho que não sente mas fala, fala-me, e fala-te. A ti como a mim.
Um bicho que ouve e me tenta levar para longe

de ti.

Molero

13.5.06

Chuva na terra

Num xadrez quadrado a abanar em círculo, às voltas rodopiando, as gotas imundas da chuva pequena caem sobre o pavimento. O som da percussão, o ritmo de semicolcheias de água a torturar a terra. Já pisada de água outra. Apenas consigo saber que vão caindo. Não lhes consigo prever a forma. Onde caem, como caem, em que lugar. A que hora me pingam o nariz ou me inundam a canela das calças. Apenas vejo chover. Somente isso.

- Aqui chove muito mais do que ali. – oiço uma boca idosa pronunciar com certeza patente, do outro lado da estrada. Quem o determina é a mão e a vontade do acaso. Se é que o acaso poderá ter vontade própria. Ou mesmo, alheia. Casualmente distribui a quantidade, que o velho agora me comenta. Reparte o líquido pelo espaço com o olhar azul do fortuito. Velhas de mãos falantes, encarnadas de tão tagarelas, sentadas na pedra do banco, plantado bem ao centro do largo exíguo da aldeia. Falam-me, falam-me. Dizem-me que amanhã choverá por certo. Pouquíssimo terá isso de certo. As gotas caem e nada nelas é repetido, nada. Caem, esmagam na queda a seiva do palpite que possa germinar na língua delas. Terra quente a receber a água, frescas folhas a absorver a solidez do diáfano líquido, inócuo de tão ocasional. Nada as poderá livrar do acaso que transportam. Nada.

Apenas nos é permitido constatar, não antecipar. É-nos impossível antever se, como e quando choverá amanhã. Apenas nos iludimos, entretendo as mãos e o corpo na secular tentativa de prever como será o tempo amanhã. Em todas as vertentes que o conceito tempo encerra em nós.

Casualidade, ocasião imprevista, sorte, azar, talvez, «quem sabe», «um dia, eventualmente». Palavras cidadãs da ilha de aleatoriedade que o meu coração plantou nos braços da razão. A racionalidade apoderou-se delas mas não nos desnuda o conteúdo. Guarda-as. É a emoção que o faz. Deposita-me no cérebro a crença de que os acasos são a maior de todas as mensagens subliminares. No limiar do encantemento, do poder artificial de ser feliz. Também a felicidade é vestida de acaso. Só por sorte conseguiremos ser felizes, só por sorte a coroa da moeda ocultará a cara feia da desventura. Cara de dias com chapéu nublado. Mente toldada. Beijos turvos por tão sombrios. Olhos inertes por tão desinterssados, já nem abrem, porque não vale a pena, afinal só por sorte serei feliz. A salinha é pequena, mesa ao centro, desenhada a compasso perfeito. Vou tentando escrever casualmente sobre o ‘acaso’, na folha branca debaixo do queixo. Um CD toca repetidamente do meu lado esquerdo, ralha decibéis frenéticos. Sem conseguir imaginar antes, um cântico grita aos meus ouvidos em lancinante eco: «O acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído». Há alguém, lá em cima, que sempre insiste mostrar-nos a cara do acaso.

Ao lançar um dado com sarampo, pintas a vesti-lo, sobre o tabuleiro do jogo. Ao riscar nomes em papéis sumários, rasgados apressadamente, de forma disforme, para escolher qual de nós será o delegado de turma. Ao caminhar na rua, chuva a cair como pancadas em batuques, passos rítmicos sonorizados pelos sapatos a calcar a humidade da calçada aos cubos azuis e brancos, viro a esquina e me surge, com toda a força que o acaso algum dia julgou possuir, a figura da menina pensante em que te moldaram.

É isso o acaso. Despontar-nos de frente o mundo todo, redondo e cheio, que concebemos sem certezas. Raiar-nos quem não esperamos ver, mas, com os punhos cerrados com a força toda, desejamos.

A chuva continua a cair sobre o peitoril da janela do meu quarto. Quando parará? Será que vai parar? Não sei nem nunca o saberei. É a única certeza que ainda tenho.1

texto premiado pelo DN Jovem de 12 de maio

1 excepcionalmente prosa.