Chuva na terra
- Aqui chove muito mais do que ali. – oiço uma boca idosa pronunciar com certeza patente, do outro lado da estrada. Quem o determina é a mão e a vontade do acaso. Se é que o acaso poderá ter vontade própria. Ou mesmo, alheia. Casualmente distribui a quantidade, que o velho agora me comenta. Reparte o líquido pelo espaço com o olhar azul do fortuito. Velhas de mãos falantes, encarnadas de tão tagarelas, sentadas na pedra do banco, plantado bem ao centro do largo exíguo da aldeia. Falam-me, falam-me. Dizem-me que amanhã choverá por certo. Pouquíssimo terá isso de certo. As gotas caem e nada nelas é repetido, nada. Caem, esmagam na queda a seiva do palpite que possa germinar na língua delas. Terra quente a receber a água, frescas folhas a absorver a solidez do diáfano líquido, inócuo de tão ocasional. Nada as poderá livrar do acaso que transportam. Nada.
Apenas nos é permitido constatar, não antecipar. É-nos impossível antever se, como e quando choverá amanhã. Apenas nos iludimos, entretendo as mãos e o corpo na secular tentativa de prever como será o tempo amanhã. Em todas as vertentes que o conceito tempo encerra em nós.
Casualidade, ocasião imprevista, sorte, azar, talvez, «quem sabe», «um dia, eventualmente». Palavras cidadãs da ilha de aleatoriedade que o meu coração plantou nos braços da razão. A racionalidade apoderou-se delas mas não nos desnuda o conteúdo. Guarda-as. É a emoção que o faz. Deposita-me no cérebro a crença de que os acasos são a maior de todas as mensagens subliminares. No limiar do encantemento, do poder artificial de ser feliz. Também a felicidade é vestida de acaso. Só por sorte conseguiremos ser felizes, só por sorte a coroa da moeda ocultará a cara feia da desventura. Cara de dias com chapéu nublado. Mente toldada. Beijos turvos por tão sombrios. Olhos inertes por tão desinterssados, já nem abrem, porque não vale a pena, afinal só por sorte serei feliz. A salinha é pequena, mesa ao centro, desenhada a compasso perfeito. Vou tentando escrever casualmente sobre o ‘acaso’, na folha branca debaixo do queixo. Um CD toca repetidamente do meu lado esquerdo, ralha decibéis frenéticos. Sem conseguir imaginar antes, um cântico grita aos meus ouvidos em lancinante eco: «O acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído». Há alguém, lá em cima, que sempre insiste mostrar-nos a cara do acaso.
Ao lançar um dado com sarampo, pintas a vesti-lo, sobre o tabuleiro do jogo. Ao riscar nomes em papéis sumários, rasgados apressadamente, de forma disforme, para escolher qual de nós será o delegado de turma. Ao caminhar na rua, chuva a cair como pancadas em batuques, passos rítmicos sonorizados pelos sapatos a calcar a humidade da calçada aos cubos azuis e brancos, viro a esquina e me surge, com toda a força que o acaso algum dia julgou possuir, a figura da menina pensante em que te moldaram.
É isso o acaso. Despontar-nos de frente o mundo todo, redondo e cheio, que concebemos sem certezas. Raiar-nos quem não esperamos ver, mas, com os punhos cerrados com a força toda, desejamos.
A chuva continua a cair sobre o peitoril da janela do meu quarto. Quando parará? Será que vai parar? Não sei nem nunca o saberei. É a única certeza que ainda tenho.1
texto premiado pelo DN Jovem de 12 de maio
1 excepcionalmente prosa.
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