27.7.06

Linha da dor

Os montes, as costas do sonho sobre a prata,
riscos crescentes na linha da dor.
O grito de olhares soalheiros dilata,
tristes sulcos cobardes, sem valor.
Mera cicatriz de sonho aterrador
e o pescoço a sufocar num acorde de sonata.
Um falar divino em transparente ardor,
aviva o cheiro aceso do espanto
e a luz inteira do encanto
em que oiço o teu grito arrasador.
E tendo, assim, no olhar um recanto
de sobressalto a chegar a todo o vapor.
Nem sequer tenho o sonho que entretanto
me esmaga o sangue e o engano
e a dor, a burla e o meridiano
em que te encontrei, no desencanto
da partida e largada, até ao tutano.
E no fim, crescendo no campo do pranto,
esqueço os riscos na linha da dor,
tristes, medrosos, sem valor,
na luz infeliz que enquanto
me escondem o sonho predador
me ilumina o teu grito que levanto.

Molero

14.7.06

O nome do vento

Neste instante, desempregado de sentimentos. Agora, junto com o negro fundo, a respirar silêncios que choram comigo. Há muito que as gotas de sal me pingam as paredes do rosto, tecido de crocodilo. A infância em que tu, Joanna, e eu respirávamos um amor de que ainda não sabíamos o nome certeiro. As coisas estão inertes, como agarradas pela gravidade que nos puxa para o fundo. Os móveis, os livros, os sons, as portas e as janelas, os estanhos ao centro da mesa pesarosa, as rendas pendentes no varão, em cima. Tudo congelado pelo nada que nos ocupa. O nada.

- o nada que me faz pensar nisto, em ti -

Há vozes ao longe, não muito, são como passos a arrastar os calcanhares da vida para dentro da sala encalhada. Não entram. Na janela, brecha de mundo sério, vislumbra-se, pelas fendas que a cortina ainda autoriza, a escola dos pequenos. Mundo de silêncios nenhuns. Em baixo, no largo de terra castanha-clara, um pequeno gira pedais de triciclo,

- o mundo dos grandes resolvido sobre três rodas, a girar -

, três saltam a uma corda de sonhos que ainda nem sequer sabem que virão a ter, cinco escondem-se uns dos outros sem sequer saberem que é isso a vida dos adultos. De quando em vez experimenta-se o vento, leve, em granulado insistente que alivia o calor das mãos. Afasta, com dedos de bisturi, as folhas caídas do chão, mortas. Folhas que só sentimos findar na queda. Ao de leve. Ao centro dos olhos,

- recordo os gritos do exército de pequenos ali ao fundo, na escola -

sonho com folhas a nascer para nunca cair, sonho com lâmpadas acesas noite dentro, sonho com beijos longos que nunca descansam, sonho com terras castanhas-claras com crianças sempre, sonho com pessoas a espantarem-me com a bondade alheia, sonho com gelados em noite de caldo, sonho com livros que nunca irei devorar, sonho com terras que nunca irei pisar, sonho ser Pessoa e Eça simultaneamente, sonho com ferraris à porta, sonho com o odor a batatinhas pequenas do almoço na avó,

- entra, sem portagem, o cheiro pela testa acima, como afago em aroma cheio -

, sonho com amendoins na esplanada, sonho com escolas com meninos muitos, sonho ser escritor, ver o meu nome numa capa, sonho que não haja sonhos impossíveis, sonho que voltarei à escola, com terra castanha-clara, girar os pedais ao mundo, saltar a corda dos sonhos que serão um dia, esconder-me de todos os rostos para poder dizer-te que só te quero

- não sei se entendes, Joanna -

só te quero a ti.


texto premiado pelo DN Jovem de 14 de Julho.

Adaptado do capítulo X de Espaço de Ensaio.

Excepcionalmente prosa.

7.7.06

De sorriso esguio

Aqui. A verdura dos teus sons, pernoito neles,
inspiro-lhes o sumo. Cais-me
dos dedos abaixo, como folhas moídas, como mortas,
e contaminam o sangue
negro do entristecer. Sem ti. Sem que me ocultes o escravo
pasto da ausência assaz. Cegueira dos mãos,
mudez dos olhos, derrotado pela
doença do sonho.
Pela dureza do veneno oculto.
Pernoito nos timbres da tua fala, rego-lhes o verde,
devolvo-lhes os dedos e as folhas e o sangue,
e o apelo da mão com sede de costas e de cabelos e de ouvidos. E fantasio
ter-te aqui, menina de olhos laços e mãos tímidas e casta pele.
Apareces-me na porta, na ignorância dos sentidos,
evocando noites de outra luz. De outro ar.
O veneno deste vácuo, ouço-lhe o verde, clarinho, sumo doce,
e declara que aqui o engano dos mãos já me cega, a dureza dos olhos já me cala

o sorriso esguio do amor.

Do meu.

Molero