14.7.06

O nome do vento

Neste instante, desempregado de sentimentos. Agora, junto com o negro fundo, a respirar silêncios que choram comigo. Há muito que as gotas de sal me pingam as paredes do rosto, tecido de crocodilo. A infância em que tu, Joanna, e eu respirávamos um amor de que ainda não sabíamos o nome certeiro. As coisas estão inertes, como agarradas pela gravidade que nos puxa para o fundo. Os móveis, os livros, os sons, as portas e as janelas, os estanhos ao centro da mesa pesarosa, as rendas pendentes no varão, em cima. Tudo congelado pelo nada que nos ocupa. O nada.

- o nada que me faz pensar nisto, em ti -

Há vozes ao longe, não muito, são como passos a arrastar os calcanhares da vida para dentro da sala encalhada. Não entram. Na janela, brecha de mundo sério, vislumbra-se, pelas fendas que a cortina ainda autoriza, a escola dos pequenos. Mundo de silêncios nenhuns. Em baixo, no largo de terra castanha-clara, um pequeno gira pedais de triciclo,

- o mundo dos grandes resolvido sobre três rodas, a girar -

, três saltam a uma corda de sonhos que ainda nem sequer sabem que virão a ter, cinco escondem-se uns dos outros sem sequer saberem que é isso a vida dos adultos. De quando em vez experimenta-se o vento, leve, em granulado insistente que alivia o calor das mãos. Afasta, com dedos de bisturi, as folhas caídas do chão, mortas. Folhas que só sentimos findar na queda. Ao de leve. Ao centro dos olhos,

- recordo os gritos do exército de pequenos ali ao fundo, na escola -

sonho com folhas a nascer para nunca cair, sonho com lâmpadas acesas noite dentro, sonho com beijos longos que nunca descansam, sonho com terras castanhas-claras com crianças sempre, sonho com pessoas a espantarem-me com a bondade alheia, sonho com gelados em noite de caldo, sonho com livros que nunca irei devorar, sonho com terras que nunca irei pisar, sonho ser Pessoa e Eça simultaneamente, sonho com ferraris à porta, sonho com o odor a batatinhas pequenas do almoço na avó,

- entra, sem portagem, o cheiro pela testa acima, como afago em aroma cheio -

, sonho com amendoins na esplanada, sonho com escolas com meninos muitos, sonho ser escritor, ver o meu nome numa capa, sonho que não haja sonhos impossíveis, sonho que voltarei à escola, com terra castanha-clara, girar os pedais ao mundo, saltar a corda dos sonhos que serão um dia, esconder-me de todos os rostos para poder dizer-te que só te quero

- não sei se entendes, Joanna -

só te quero a ti.


texto premiado pelo DN Jovem de 14 de Julho.

Adaptado do capítulo X de Espaço de Ensaio.

Excepcionalmente prosa.

2 Comments:

Blogger Isa Mestre said...

Não há melhor sensação do que sorrir, sorrir para um ecrã repleto de palavras, como se elas tocassem em cada canto dos meus lábios e me levassem a esboçar este sorriso, sorriso que é repleto de orgulho, de admiração, da mais profunda sinceridade. Não há palavras proibidas, cada uma é a perfeita, a escolhida e os teus sonhos tornam-se claros e distintos nesta folha de papel...porque nunca te esqueças que há-de ser lá que crescerás, que te tornarás mais homem do que és, que poderás sonhar cada vez mais além. Sim! Será nas folhas de papel. Nunca te esqueças. Eu acredito.
Um beijo

Isa Mestre

4:14 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Very pretty design! Keep up the good work. Thanks.
»

1:09 da tarde  

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