27.6.06

Conseguisse eu amar as pedras

Construí pontes, como limpos devaneios, penedos
conseguisse ter caras no lugar de pedras, narizes e veias,
a quem chamasse amor, em cada segundo pudesse arrancar-te um
pouco mais de aridez, de secura.
Esta palavra. Agora. Este verso. Soubesse que a verdade
poderia corrigir com que, nesta
penúria de ambos, os teus devaneios
vencessem a dureza dos penedos. Como em gestos
de narizes e de veias e de pedras, te repusesse uma semente
que regava ao inspirar o teu cheiro,
ao pisar a tua ponte, silêncios. Confundindo os teus,
trocando a tua orla bocal pelo copo em que sede abafa a água
de sonhos já secos. Aí, sobre as pontes que construíra, navego
de vez pelas sombras de pólen e amor em ocultos.
Faço das pontes saída e entrada de campos novos e cheios e flores.
Faço o mesmo ao amor, sempre que entre nós
há portagens de silêncios e ocultos e seca. Num quadro sem cores,
de castanhos, de sol obtuso, de nuvens maciças, pontes e rochas
e o defunto mar do tempo em corrida
e a corrida não para, nem o tempo, nem o vento, nem nós.

Roubarei eu o tempo que perdemos?
Conseguisse ter a tua cara no lugar das pedras, narizes e veias, conseguisse.
Conseguisse eu amar as pedras.

Molero

17.6.06

A imensidão da sede

Fui enganado pela leveza obscena do teu Passado,
Saberia eu que as pedrinhas no sapato eram já pedaços teus,
nesta cadeira, agora, esperneio de dor
nos braços longos das palavras.
Aquele é o chão que fecundo foi, e limpo e cuidado deu, e os teus dedos o tocaram.
Os meus dedos são feitos de negro, de pólvora com unhas
e carne, como lava queima.
Escondo-me dos teus dedos para sempre,
tapo o que sobra com as palavras da fome que ferve.
E ser migalha, ser quebradiço, ser delgado como cabelos cegos. Nesta cadeira, agora,
escondo-me do fogo cruzado sobre as vistas, sobre o peito.
Centro em mim um medo de rato, um medo de fraco. Tive em mim a convicção dos leões,
agora, nesta cadeira, não me sobram os nomes e abundam-me os verbos. Não soube o que
disse, não soube o que não disse. Não soube. Não. Linha de
rosto em militar apatia, da letargia,
da vida fugaz dos meus dedos de fome.
É esta a tarde em que fingi desinteressar-me, fabulei não ter fome.
A cicatriz permanece hirta dentro do meu lábio.

Voltei a esticar os braços tentando unir-nos com a mão.
Saberei eu que já se não une o que foi quebrado?
Não sei se a fome se mata com balas de impossível.
Não sei se consigo fazer do medo escudo.
Não sei se matarei a fome com ele.

Fui, nos teus dedos, uma gota na imensidão da sede.

Molero

12.6.06

Irmão dos dias

como chávena branca, apenas um gesto te dava
fronteiras de planície sobre o braço
em mutação, numa revolta de embaraço,
de paragem de peito que transbordava.

estavas azul e laranja num traço
de sombra que o final do sonho me parava
e a boca era luz que condensava
o mais negro verbo pintado a aço.

apenas o peso do sonho te faria
espreguiçar a ilusão e a verdade,
irmã dos dias e dos poemas que serão.

rasgando em branco de eterna utopia,
a dor dos olhos, a pena da claridade,
o gesto que me dará a mais escura prisão.

Molero