28.4.06

S

volto a casa, casa, chegada de uma partida que nunca tive, nunca,
vivo nas sombras do que teria sido, apenas decido as letras que gravo,
gravei, tentei dizer-te nunca serás o que quero que sejas, nunca, jamais,
cerro os dentes a cuspir bocadinhos de raiva, de sangue branco, ainda sangue

teu dentro do corpo meu. Corpo, corpo. Um porto de barcos em imagem, fotografia
reflectida no chão espelhado que limpas, que envernizas, com a força que o mar agarra
a terra. Terra. Salivo barro do chão. Limpas os cacos de mim no mosaico da tua sala, sala dos dias em que vimos
as nossas bocas feitas uma, os nossos braços feitos dois, as nossas pernas feitas duas,
os nossos olhos feitos dois, a nossa alma ainda duas. Duas, sempre duas. De boquinhas bem caladas,
rejeitadas, o que dissemos ao ouvido alheio nunca foi ouvido, pisado, beijado. As tatuagens dos meus dedos a agarrar o teu peito, as mãos, rebolar os teus olhos por entre os dedos do oculto. Insulto, insuflo a tua saliva embrulhada em vocábulos.

Sou um corpo feito de sangue,
líquidas astilhas de ti dentro das minhas veias.

Molero

16.4.06

Resto

Nada
eu sou. Nada.
Nada de nada, se possível.

Que a água do copo não o consegue todo encher.
Que a manta que no tentar tapar sempre me descobre.
Que ao nada vamos tremendo as pernas. Fugindo os olhos.
Que ao nada escondemos o sempre que o tudo nos deu.
Que os mares seguirão para os rios todos.
Que o silêncio da música é ainda parte dela. Sobretudo. Dela.
Que o sempre é o que tivemos quando o nada morreu.

O que sobra? O que nos fica do algo que nasceu?
O que fica é apenas a sombra morta do que nos sobeja,
entre o nada e o tudo. O

resto. Tudo o resto.

Molero

13.4.06

Neste

Neste sonho perpendicularmente separado em facções,
neste caminho prendido aos encantos do vácuo,
neste fio condutor de vazios e omissões inconstantes,
neste saber que nada se sabe do que um dia se pensou
ter.
Neste cúmulo de folhas sem árvore, de mãos sem braços, de guitarras sem música,
ruídos.
Neste sentir agulhas de palavras afiadas, sangra. Sangra-me. Espera-me, espera-me.
Neste rodopiar sem
círculo-guia. Torno de um coração cicateiro,
que nada ouve do que lhe tentas

dizer.

Molero

2.4.06

Gatos

Parado na avermelhada última tarde em que vi teus olhos,
e tenros, e ternos, praguejados de intensa chama extinta
olho-te de frente, como quem estagnado espera quem alguém o encontre. Entre a terra e o céu. Dormentes estão os olhos, as mãos estanques, esgotadas. Tu
estás no assento do remoto. Afastado pelas mãos corpolentas do nosso mar defunto. Atlântico do teatro das recordações. Parente de alvitrar o coração teu nos dedos meus.
Adeus, pincesa do oculto. A deslumbrante harmonia que me transporta até à tua catre. Perco-te nos lençóis da tristeza inata. Que me faz colher. Colher. Nas ruas, nas ruas. Torturas, profundas. No perfeito dinamismo da anca, das mãos. Cinco esfinges em forma de luva. E

por fim, captas as asas que foram as minhas e cruzas a água que desune nossos gestos. Prensas
a minha mão contra a tua. E, como os gatos, cheiras as minhas pernas mas não ficas

aqui.

Molero